segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O POETA GASTÃO CRUZ



A POESIA DE GASTÃO CRUZ.

GASTÃO CRUZ, nasceu em Faro, em 1941. Poeta e crítico literário, formou-se em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa. Foi professor do ensino secundário e, entre 1980 e 1986, leitor de Português no King’s College, em Londres.

Como poeta, o seu nome aparece inicialmente ligado à publicação colectiva Poesia 61. Como crítico literário, colaborou em vários jornais e revistas ao longo dos anos sessenta. Essa colaboração foi reunida em volume, com o título A Poesia Portuguesa Hoje (1973), livro que permanece hoje como uma referência para o estudo da poesia portuguesa da década de sessenta.
Ligado também à actividade teatral, Gastão Cruz foi um dos fundadores do Grupo de Teatro

EDUARDO LOURENÇO: A HABITAÇÃO DO TEXTO

Por Gastão Cruz

A mais antiga lembrança que tenho de ouvir falar de Eduardo Lourenço remonta à década de 1950, talvez 1956 ou 57, quando eu era aluno de um dos últimos anos do curso liceal, em Faro. Um grande amigo e colega,extremamente bem informado acerca das mais diversas áreas culturais, da literatura à música, da pintura à filosofia – esta última o seu interesse principal – mencionou, a certa altura, um livro que reputava de grande importância, Heterodoxia de Eduardo Lourenço.


Não cheguei, naquele tempo, a ver tal livro, mas parece-me hoje surpreendente que um estudante liceal o conhecesse, não sei até que ponto, mas creio que não apenas de nome, sete ou oito anos somente depois da sua publicação, e quando o nome de Eduardo Lourenço estava ainda bem longe de ser conhecido como é hoje.

De qualquer modo, o conceito de “heterodoxia” exercia um indubitável fascínio nos espíritos destes dois adolescentes, que já sabiam, pelo menos, que era esse o seu modo de estar relativamente às ortodoxias vigentes mais perceptíveis, fossem elas a da Santa Madre Igreja ou a do regime político ditatorial.

Fixei o nome do autor e continuei a ouvi-lo com alguma frequência, ao longo dos anos subsequentes, mas suponho que só li, pela primeira vez, uma obra com a sua assinatura, quando, em 1961, Eduardo Lourenço prefaciou a Antologia de Eugénio de Andrade, editada pela Delfos.
Igualmente marcante foi a saída, em 1968, na Ulisseia, do livro Sentido e Forma da Poesia Neo-realista.

Era esse um tempo extraordinário, em que vários escritores, na sua maioria poetas, se reuniam quase diariamente, ao princípio da tarde, num pequeno restaurante que, depois do almoço, passava a café. A presença mais regular era a de Carlos de Oliveira, assiduidade que, aliada ao magnetismo da sua personalidade, fazia dela, de certa forma, o centro da sempre renovada reunião.

Eduardo Lourenço diz algures que, em grande parte, escreveu esse livro para se reconciliar com o autor de Colheita Perdida. E a verdade é que Carlos de Oliveira manifestou uma genuína alegria pelo aparecimento da obra. Pude testemunhá-lo e recordo também o reencontro entre os dois, quando, daí a pouco tempo, Eduardo Lourenço apareceu, uma tarde, naquela exaltante tertúlia, onde, apesar de, como disse, nela predominarem os poetas, não se falava apenas, nem talvez principalmente, de poesia: tudoo que fosse considerado de interesse se comentava, sobretudo a actualidade política, sempre com a esperança de que estivesse próximo o fim do odiado regime.

Esta memória afectiva de 1968 contribuiu decerto para que, quando, na Relâmpago, decidimos dedicar um número a Eduardo Lourenço, na sua especial qualidade de “leitor de poesia”, imediatamente me tenha ocorrido escrever alguma coisa acerca do ensaio que, em Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, ele dedica a Carlos de Oliveira. Não irei obviamente repetir agora, nem sequer resumidamente, a análise que, no meu texto, procuro fazer da sua leitura do poeta de Cantata.

Gostaria de lembrar apenas que, abordando a poesia de Carlos de Oliveira do ponto de vista do “trágico” (que se trate do “trágico neo-realista” pouco importa), e considerando que “o banalizado e suspeito termo ‘existencial’[...], liberto da sua auréola idealista parece ajustar-se como poucos à [poesia] de Carlos de Oliveira”, Eduardo Lourenço inscreve este poeta na constelação dos que mais evidentemente o interessaram, de Antero a Pessoa e Sá-Carneiro, aqueles em quem o pessoano “mistério de existir”, indissociável do mistério de morrer, porventura mais fundamente se exprimiu na nossa poesia.

Junto destes, e na mesma perspectiva, ficaria bem o nome de Ruy Belo, a personalidade poética que, na segunda metade do século XX, mais intensamente encarna e prolonga a dialéctica desses dois mistérios, vida e morte, na imperceptível linha entre eles traçada reconhecendo o exaltante
contorno da “margem da alegria”.

A linguagem criada por Eduardo Lourenço para a aproximação aos poetas de quem fala, ou para a reflexão mais geral acerca da natureza da poesia, tem fortes afinidades com o modo como, no período moderno, alguns dos nossos principais poetas descreveram o seu ofício e o pensaram.

Numa das primeiras páginas de Pessoa Revisitado, podemos ler o seguinte: “O poeta é aquele que escolheu ter um ser através da sua linguagem. Isso pressupõe que a Linguagem possa dizer o ser. Por essência a poesia nunca duvidou disso, ou duvidou afirmando-se através dessa dúvida.”

Algum parentesco encontramos entre esta forma de falar do poeta e da poesia e, por exemplo, o texto, intitulado “Poética”, em que Eugénio de Andrade afirma: “O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação”. Também Sophia, numa das suas “Artes Poéticas”, diz: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. [...] Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.”

Penso que, no Portugal do século XX, pouca gente escreveu sobre poesia como os próprios poetas. Melhor dizendo, poucos, além deles, falaram da poesia vivendo-a, isto é, habitando-a, para recuperar uma palavra, e uma ideia, de Eduardo Lourenço, que surge numa das entrevistas inéditas agora publicadas na revista Relâmpago.

Referindo-se ao já aqui citado prefácio, de 1961, à Antologia de Eugénio de Andrade, posteriormente incluído em Tempo e Poesia, fala Eduardo Lourenço de “uma proposição da crítica do poético que não seja da ordem do explicativo, nem da perífrase, mas da osmose, quer dizer, uma viagem no interior do texto não para lhe acrescentar qualquer coisa mas para o habitar.”

Penso que este conceito de crítica se afasta completamente do que é usual encontrarmos nos ríticos de poesia, o que não quer dizer que não existam caminhos diversos para a abordagem do poema.

Porém, este é absolutamente sedutor. E perigoso, na exacta medida do seu fascínio. É necessário, na verdade, alguém ter o génio literário de Eduardo Lourenço para se aventurar na via da riação de uma linguagem que, através da “osmose”, como ele nos diz, irá habitar o texto pré-existente,
triunfando nessa forma de acesso ao seu cerne significativo profundo. É certamente neste sentido que se tem dito que o estilo ensaístico de Eduardo Lourenço, quando fala de poesia, é o de um poeta. E é também compreensível que ele recuse essa classificação. Num sentido técnico, igamos, o autor de Tempo e Poesia não é, de facto, um poeta. Todavia, a sua crítica é, muitas vezes, um texto poético.

E não serão “poemas em prosa”, essa designação um tanto absurda, como ele lhe chama, usada desde Baudelaire, ensaios como “Ísis ou a inteligência”, “Orfeu e Abraão ou a poesia, a lucidez e a fé”, ou mesmo, de algum modo, “O poeta na cidade (hoje)”, agora publicados, ou, já em 1951, esse texto fundador da sua visão que é “Esfinge ou a poesia”, saído no primeiro número de Árvore?

Essa visão da poesia harmonizava-se perfeitamente com a exaltada consciência de modernidade que ecoava nas páginas da revista, e particularmente nos poemas, nos ensaios e nas recensões críticas assinados por António Ramos Rosa.

A concepção de uma poesia absolutamente livre, na sua intensidade criadora, conduzia à defesa de uma linguagem que se queria autónoma em relação à produção lógica do discurso ormalizado.

A esfinge, como alegoria do fenómeno poético, representava o que se tornara essencial discurso da poesia moderna: a ambiguidade. Cito: “Espírito da Terra capaz de romper através da vida obscura da inércia animal para oferecer uma face de deus ao apelo universal da luz, a Esfinge
4 é incarnação perfeita da ambiguidade radical da situação humana. E ao mesmo tempo a realização plástica mais concreta do acto original do homem: a poesia.

Chamaram-lhe misteriosa e enigmática. E ela não é senão ambígua.” E depois: “No espírito do seu criador, a Esfinge é uma resposta. A poesia é expressão de origens. Solicitado pela noite animal e a plenitude solar, um poeta talhou na rocha uma forma visível da sua condição. Compreender a Esfinge, compreender a poesia é olhá-la sem a tentação de lhe perguntar
nada. É aceitar o núcleo de silêncio donde todas as formas se destacam. A obra vale pela densidade de silêncio que nos impõe. Por isso os poetas que imaginam dizer dizer tudo são tão vãos como as estátuas gesticulantes.
Agora é fácil compreender como pôde nascer o mistério da esfinge. O enigma da poesia.”

O paradoxal silêncio da poesia, a que vários poetas se referem, de Eugénio de Andrade a Ruy Belo, não é senão a estranheza que a poesia sempre manifesta perante a realidade e se transforma na própria substância do seu dizer: “É uma coisa estranha este verão.” – assim começa o poema “Ácidos e óxidos” de Ruy Belo.

Diante do mundo, o poeta sente que a poesia é o próprio mundo e nada mais, que a linguagem poética mais não é que uma especial atenção às imagens que dele nos chegam e que essa atenção basta para o recriar. Disse-o Sophia, como já vimos, ao anunciar-nos que a poesia lhe pede “que
viva atenta como uma antena”. Disse-o igualmente Carlos de Oliveira em versos que muitas vezes tenho citado: “levantar a torre do meu canto/é recriar o mundo pedra a pedra”. E disse-o ainda, é claro, Fernando Pessoa, nesse pequeno supremo poema sobre a natureza da poesia: “Ao longe, ao luar,/No rio uma vela,/Serena a passar,/Que é que me revela?//Não sei, mas
meu ser/Tornou-se-me estranho”.

A estranheza causada por uma simples e serena vela que “ao longe, ao luar” passa no rio é, na verdade, a essência mais absoluta da poesia, o “autêntico real absoluto” do aforismo de Novalis que antigamente encontrávamos como lema da colecção Poesia, da Ática, e Eduardo Lourenço, na entrevista a que já me referi, volta a convocar, dizendo que o toma à letra.

Aquele “meu ser tornou-se-me estranho” é a essência da situação do poeta frente ao mundo, ou, como diria António Ramos Rosa, em “diálogo com o universo”. Ou ainda, como lemos em Vitorino Nemésio, “Nomeei as coisas e fiquei contente:/Prendi a frase ao texto do universo.”
Essa estranheza, que deriva de uma maior atenção ao mundo, não é senão a consciência que advém de uma outra (e afinal a mesma) atenção (e note-se como “atenção” volta a ser aqui a palavra-chave): a atenção à vida que Fernando Pessoa afirma ter posto nos seus três principais heterónimos:
“Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito de vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir.”

Para exprimir tal estranheza, de que a modernidade tomou certamente mais aguda consciência, e que já está, evidentemente, em Cesário – por isso ele é um poeta moderno – teria de ser inventada uma nova linguagem, ou melhor, novas linguagens, que marcam impressivamente toda a história (já podemos falar assim) da poesia portuguesa do século XX.

Profundamente sensível a este vasto processo criador, Eduardo Lourenço sempre tem estado em consonância com ele, descobrindo a linguagem crítica que poderia, e pôde, “habitar”, como ele disse, esta poesia.

O seu trabalho tem sido, importa sublinhá-lo mais uma vez, fundamental para o nosso conhecimento, não apenas dos poetas que estudou, mas da poesia em si, e da modernidade poética, em particular.

Nenhuma obra crítica nos é tão essencial à compreensão do que mais importa no poderoso mundo poético que é o nosso – sobretudo o dos modernos, é claro, mas também o de outros que igualmente fascinaram Eduardo Lourenço: Camões, Antero. Porque é sempre de poesia que se
trata.

Termino, com estas palavras retiradas do ensaio “O poeta na cidade (hoje)”: “A poesia, quer dizer a longa trama dos poemas onde a humanidade a si mesma se construiu a única arca de Noé que sobrevive a todos os dilúvios – não é a nossa maneira de nos evadirmos do que somos
mas de nos apercebermos, embora em figura, como dizia São Paulo, de quem verdadeiramente somos. É uma barca de palavras, mas tem o poder de transfigurar o que é opaco e não humano naquela realidade que tem um sol no meio e chamamos vida, a nossa vida, a nossa única vida.”

Gastão

OPINIÃO.

Não sendo especialista, ocorre-me dizer, que a poesia de Gastão Cruz, vem na linha da poesia que privilegia a palavra em vez da mensagem, que, terá, certamente, os seus leitores fiéis e terá também dos outros.

Vê-se na sua poesia que é um autor com cultura acima da média. È um poeta que é mesmo poeta, que pretende, quanto a mim, elevar essa forma de comunicar que é a poesia.

Não tenho sensibilidade nem conhecimentos para apreciar a sua poesia, porque não lhe vejo total encantamento. Mas a lacuna é minha.

Mas prometo ir estudá-lo porque sinto arte nos seus trabalhos. Como este,



LEMBRANÇA DA RIA DE FARO

Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia


JBS

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