
A POESIA DE GASTÃO CRUZ.
GASTÃO CRUZ, nasceu em Faro, em 1941. Poeta e crítico literário, formou-se em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa. Foi professor do ensino secundário e, entre 1980 e 1986, leitor de Português no King’s College, em Londres.
Ligado também à actividade teatral, Gastão Cruz foi um dos fundadores do Grupo de Teatro
EDUARDO LOURENÇO: A HABITAÇÃO DO TEXTO
A mais antiga lembrança que tenho de ouvir falar de Eduardo Lourenço remonta à década de 1950, talvez 1956 ou 57, quando eu era aluno de um dos últimos anos do curso liceal, em Faro. Um grande amigo e colega,extremamente bem informado acerca das mais diversas áreas culturais, da literatura à música, da pintura à filosofia – esta última o seu interesse principal – mencionou, a certa altura, um livro que reputava de grande importância, Heterodoxia de Eduardo Lourenço.
Igualmente marcante foi a saída, em 1968, na Ulisseia, do livro Sentido e Forma da Poesia Neo-realista.
contorno da “margem da alegria”.
Penso que este conceito de crítica se afasta completamente do que é usual encontrarmos nos ríticos de poesia, o que não quer dizer que não existam caminhos diversos para a abordagem do poema.
Porém, este é absolutamente sedutor. E perigoso, na exacta medida do seu fascínio. É necessário, na verdade, alguém ter o génio literário de Eduardo Lourenço para se aventurar na via da riação de uma linguagem que, através da “osmose”, como ele nos diz, irá habitar o texto pré-existente,
triunfando nessa forma de acesso ao seu cerne significativo profundo. É certamente neste sentido que se tem dito que o estilo ensaístico de Eduardo Lourenço, quando fala de poesia, é o de um poeta. E é também compreensível que ele recuse essa classificação. Num sentido técnico, igamos, o autor de Tempo e Poesia não é, de facto, um poeta. Todavia, a sua crítica é, muitas vezes, um texto poético.
E não serão “poemas em prosa”, essa designação um tanto absurda, como ele lhe chama, usada desde Baudelaire, ensaios como “Ísis ou a inteligência”, “Orfeu e Abraão ou a poesia, a lucidez e a fé”, ou mesmo, de algum modo, “O poeta na cidade (hoje)”, agora publicados, ou, já em 1951, esse texto fundador da sua visão que é “Esfinge ou a poesia”, saído no primeiro número de Árvore?
Essa visão da poesia harmonizava-se perfeitamente com a exaltada consciência de modernidade que ecoava nas páginas da revista, e particularmente nos poemas, nos ensaios e nas recensões críticas assinados por António Ramos Rosa.
A concepção de uma poesia absolutamente livre, na sua intensidade criadora, conduzia à defesa de uma linguagem que se queria autónoma em relação à produção lógica do discurso ormalizado.
A esfinge, como alegoria do fenómeno poético, representava o que se tornara essencial discurso da poesia moderna: a ambiguidade. Cito: “Espírito da Terra capaz de romper através da vida obscura da inércia animal para oferecer uma face de deus ao apelo universal da luz, a Esfinge
4 é incarnação perfeita da ambiguidade radical da situação humana. E ao mesmo tempo a realização plástica mais concreta do acto original do homem: a poesia.
Chamaram-lhe misteriosa e enigmática. E ela não é senão ambígua.” E depois: “No espírito do seu criador, a Esfinge é uma resposta. A poesia é expressão de origens. Solicitado pela noite animal e a plenitude solar, um poeta talhou na rocha uma forma visível da sua condição. Compreender a Esfinge, compreender a poesia é olhá-la sem a tentação de lhe perguntar
nada. É aceitar o núcleo de silêncio donde todas as formas se destacam. A obra vale pela densidade de silêncio que nos impõe. Por isso os poetas que imaginam dizer dizer tudo são tão vãos como as estátuas gesticulantes.
Agora é fácil compreender como pôde nascer o mistério da esfinge. O enigma da poesia.”
O paradoxal silêncio da poesia, a que vários poetas se referem, de Eugénio de Andrade a Ruy Belo, não é senão a estranheza que a poesia sempre manifesta perante a realidade e se transforma na própria substância do seu dizer: “É uma coisa estranha este verão.” – assim começa o poema “Ácidos e óxidos” de Ruy Belo.
Diante do mundo, o poeta sente que a poesia é o próprio mundo e nada mais, que a linguagem poética mais não é que uma especial atenção às imagens que dele nos chegam e que essa atenção basta para o recriar. Disse-o Sophia, como já vimos, ao anunciar-nos que a poesia lhe pede “que
viva atenta como uma antena”. Disse-o igualmente Carlos de Oliveira em versos que muitas vezes tenho citado: “levantar a torre do meu canto/é recriar o mundo pedra a pedra”. E disse-o ainda, é claro, Fernando Pessoa, nesse pequeno supremo poema sobre a natureza da poesia: “Ao longe, ao luar,/No rio uma vela,/Serena a passar,/Que é que me revela?//Não sei, mas
meu ser/Tornou-se-me estranho”.
A estranheza causada por uma simples e serena vela que “ao longe, ao luar” passa no rio é, na verdade, a essência mais absoluta da poesia, o “autêntico real absoluto” do aforismo de Novalis que antigamente encontrávamos como lema da colecção Poesia, da Ática, e Eduardo Lourenço, na entrevista a que já me referi, volta a convocar, dizendo que o toma à letra.
Aquele “meu ser tornou-se-me estranho” é a essência da situação do poeta frente ao mundo, ou, como diria António Ramos Rosa, em “diálogo com o universo”. Ou ainda, como lemos em Vitorino Nemésio, “Nomeei as coisas e fiquei contente:/Prendi a frase ao texto do universo.”
Essa estranheza, que deriva de uma maior atenção ao mundo, não é senão a consciência que advém de uma outra (e afinal a mesma) atenção (e note-se como “atenção” volta a ser aqui a palavra-chave): a atenção à vida que Fernando Pessoa afirma ter posto nos seus três principais heterónimos:
“Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito de vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir.”
Para exprimir tal estranheza, de que a modernidade tomou certamente mais aguda consciência, e que já está, evidentemente, em Cesário – por isso ele é um poeta moderno – teria de ser inventada uma nova linguagem, ou melhor, novas linguagens, que marcam impressivamente toda a história (já podemos falar assim) da poesia portuguesa do século XX.
Profundamente sensível a este vasto processo criador, Eduardo Lourenço sempre tem estado em consonância com ele, descobrindo a linguagem crítica que poderia, e pôde, “habitar”, como ele disse, esta poesia.
O seu trabalho tem sido, importa sublinhá-lo mais uma vez, fundamental para o nosso conhecimento, não apenas dos poetas que estudou, mas da poesia em si, e da modernidade poética, em particular.
Nenhuma obra crítica nos é tão essencial à compreensão do que mais importa no poderoso mundo poético que é o nosso – sobretudo o dos modernos, é claro, mas também o de outros que igualmente fascinaram Eduardo Lourenço: Camões, Antero. Porque é sempre de poesia que se
trata.
Termino, com estas palavras retiradas do ensaio “O poeta na cidade (hoje)”: “A poesia, quer dizer a longa trama dos poemas onde a humanidade a si mesma se construiu a única arca de Noé que sobrevive a todos os dilúvios – não é a nossa maneira de nos evadirmos do que somos
mas de nos apercebermos, embora em figura, como dizia São Paulo, de quem verdadeiramente somos. É uma barca de palavras, mas tem o poder de transfigurar o que é opaco e não humano naquela realidade que tem um sol no meio e chamamos vida, a nossa vida, a nossa única vida.”
Gastão
OPINIÃO.
Não sendo especialista, ocorre-me dizer, que a poesia de Gastão Cruz, vem na linha da poesia que privilegia a palavra em vez da mensagem, que, terá, certamente, os seus leitores fiéis e terá também dos outros.
Vê-se na sua poesia que é um autor com cultura acima da média. È um poeta que é mesmo poeta, que pretende, quanto a mim, elevar essa forma de comunicar que é a poesia.
Não tenho sensibilidade nem conhecimentos para apreciar a sua poesia, porque não lhe vejo total encantamento. Mas a lacuna é minha.
Mas prometo ir estudá-lo porque sinto arte nos seus trabalhos. Como este,
LEMBRANÇA DA RIA DE FARO
Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia
JBS
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