sexta-feira, 20 de novembro de 2009

CARTA DE UM AMIGO

SÁ DE MIRANDA


CARO BRITO SOUSA:

Contatempos vários fizeram com que só agora, tardiamente, do que peço me desculpes, esteja acusando o recebimento do teu e-mail, com trabalho e fotografia, cuja atenção agradeço. Quero contudo, em primeiro lugar, felicitar-te pelo teu invejável curriculum, revelador de uma vida muito activa e de um espírito inconformado e sempre em busca.

É um dado adquirido que a leitura que se faz de uma obra de arte envolve, em geral, sempre algo de subjectivo. O grau de conhecimento e o critério de gosto dos que a observam variam, o que leva a que o juízo que dela fazem seja díspar. Só obras geniais se impõem a todos, ... e mesmo assim há excepções. Dada a natureza muito peculiar da arte poética, esta, ainda mais sofrerá com essa subjectividade, tratando-se de uma matéria em que se misturam ideias com sentimentos porventura muito íntimos.

A imprecisão, ou melhor, a dificuldade da sua interpretação poderá, entre outras causas possíveis, ter origem na não captação dos valores ideológicos incorporados pelo autor, na falta de conhecimentos técnicos de avaliação adequados ou ainda pela boa ou má vontade de quem opina.

Daqui se infere que só um crítico abalizado e isento se poderá aproximar, em sua apreciação, da qualidade e dimensão cultural de uma obra. Ora eu que já só sou um silencioso soletrador de alheia literatura e tímido amante da poesia, sinto-me lisonjeado com o teu pedido, mas aquém de poder dar-te a douta opinião dos académicos.

O que eu sei desta "costura" são uns pontos que mal me dão para eu ir cosendo os meus botões. Todavia, não quero deixar de tentar corresponder às tuas expectativas. Não duvido, em absoluto, da pureza dos sentimentos que vertes em teus versos; pois eles espelham como te preocupas e és amigo dos que te são e foram próximos, testemunho de que, em ti, amizade e solidariedade não são palavras vãs.

Os teus anseios pela reposição dos cada vez mais desprezados valores de civilidade, desta sociedade em que sentimos o homem resvalar, são mais um sinal indicador da tua boa alma. Contudo, o exercício da poesia não se prende só às ideias e à sensibilidade do poeta, mas também, em boa medida, à forma subtil e harmoniosa como ele conjuga as palavras que modelam a expressão do seu verso.

Conseguir obter este desiderato aliado à motivação de bons temas será a melhor forma de alegrar as musas e contentar o vate. O poema pode acontecer num momento de inspiração, mas não é fácil. Normalmente precisa de "estagiar" na gaveta, para que depois de um certo distanciamento, o seu autor o ratifique ou depure, para assim, com mais convicção, puder confiá-lo ao seu incerto destino.

No caso particular das tuas composições penso que não te deves facilitar. Parece-me que denotas impaciência: "O que está feito está feito, saiu, não há mais voltas dar-lhe". Por vezes a simples troca de uma palavra ou ajuste de uma expressão, pode dar ao poema a chispa que porventura lhe faltava, valorizando-o.

Aprecio nos teus versos a sua temática sempre generosa, pondo a descoberto a motivação da tua sensibilidade. Porém, acho não deixar de ser ousado fazeres incursões por áreas em que delibera damente não pensas respeitar-lhe as regras. Aceita este àparte: não quererás fazer erguer do túmulo Sá de Miranda; o introdutor em Portugal da poesia clássica, trazida do renascimento italiano por alturas do século XVI ?

O "decassílabo heróico", verso mais utilizado no soneto, não dispensa a métrica e a acentuação tó nica, pois aí se desenha o ritmo ou linha musical do verso, brotando da sua própria estrutura silá- bica. Temos em Portugal obras de elevado valor poético; desde a poesia medieval trovadoresca até à poesia contemporânea.

Os nossos poetas, reconhecidos, ombreiam com os melhores. Sonetistas então são imensos; raro será o poeta que não praticou ou pratica o soneto para se testar a si próprio. Camões, Antero, Florbela, Bocage são talvez os mais significativos desta modalidade. Será sempre de proveito e bom gosto uma visita às suas obras para ver e tentar captar a forma como eles fabricavam os seus geniais "produtos".

Caro Brito Sousa, tens à tua disposição uma panóplia imensa de formas em que poderás verter essa veia poética que desejas (e deves) expressar. Como sabes e é sabido as modalidades clássicas têm "espartilhos" que é necessário observar. Penso que o poeta só deve dar a conhecer a sua poesia, nesta área, depois de se sentir técnicamente apetrechado.

Caro Brito Sousa, quero que saibas que o respeito que o teu trabalho me merece podes medi-lo pelo tamanho da sinceridade com que escrevi estas linhas.

Um abraço.
Aurélio Madeira

PS - Obrigado meu Mestre.

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